domingo, 20 de setembro de 2009

REPORTAGEM SOBRE O HOSPITAL MATARAZZO NO JORNAL DA TARDE


Velho Matarazzo pede socorro

Inaugurado em 1904, complexo hospitalar está fechado há 16 anos e sem perspectiva de restauro

Daniel Gonzales, daniel.gonzales@grupoestado.com.br

A imagem de um paciente idoso, muito doente, aguardando a morte chegar, inevitavelmente surge na mente de quem para por alguns minutos na Alameda Rio Claro, perto da Avenida Paulista, e observa com atenção o que restou do Hospital Umberto I (lê-se primo, em italiano) - para os mais antigos, Hospital Matarazzo, fundado em 1904. Em um dos muros do ainda imponente complexo de edifícios neoclássicos, outrora referência no atendimento de saúde no País, há até um registro estourado que, faz duas semanas, jorra água sem parar na calçada.

Prestes a completar, agora em outubro, 16 anos de sua desativação por falta de remédios e de higiene, o esqueleto do Hospital Umberto I ostenta um aspecto de abandono geral, inclusive com vegetação crescendo nas frestas dos prédios, corroídos pela umidade, para a tristeza de ex-funcionários, ex-pacientes e vizinhos, que lançaram um movimento pela recuperação urgente do complexo.

As imagens ao lado, feitas por duas ex-pacientes e obtidas pelo JT, mostram o abandono de áreas internas dos prédios. São as últimas feitas antes que a atual proprietária do terreno e dos edifícios, a Caixa de Previdência dos Funcionários do Banco do Brasil (Previ) proibisse as visitas ao hospital, alegando falta de segurança. Mesmo assim, a entidade garante estar tomando todas as medidas de manutenção, como descupinização, para evitar que o hospital se desfaça em ruínas.

Desativado em 1993, o Matarazzo é tombado por órgãos de patrimônio histórico municipal e estadual e, por isso, não pode ser descaracterizado por fora nem derrubado. Esse foi um dos fatores que fez a proprietária desistir de revender os edifícios, intenção que tinha quando adquiriu o espaço, em 1996, optando por mantê-los fechados - desde então, em um permanente “estudo vocacional para avaliar a melhor destinação para os imóveis”.

Ao mesmo tempo em que é protegido, o hospital acaba sendo “vítima” de uma brecha na legislação que, segundo especialistas, impede que o Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico (Conpresp) e seu equivalente estadual, o Condephaat, exijam a sua restauração. A lei não prevê multa, processo ou punição para casos de abandono.

O especialista em patrimônio Marcelo Manhães de Almeida, conselheiro do Conpresp, afirma que a legislação só fixa penalidades para os casos de ações como reformas não permitidas, por exemplo. “Mas não há nada o que se possa fazer nas situações de omissões”, diz. “O Umberto I é recuperável, mas há essa lacuna na lei”, concorda o arquiteto Paulo Bastos, responsável pelo tombamento do hospital, em 1986.

O próprio Departamento de Patrimônio Histórico (DPH) da Prefeitura informou que teve um de seus pedidos ignorados pela Previ. O DPH solicitou em fevereiro um relatório e diretrizes para a recuperação do conjunto. Tais documentos deveriam ter sido entregues em 30 dias. “O projeto amplo que contemple restauro não foi apresentado”, informou o órgão. O que se fez? Nada, disse o DPH. “Não existe forma de obrigar um proprietário a restaurar um imóvel”, completa a nota. Uma das ex-pacientes que lidera o movimento pela recuperação, Luana Freitas, avalia que a situação de abandono é proposital. “A verdadeira intenção é que tudo desabe. Assim, a Previ pode justificar o destombamento, e ter o terreno livre para venda. Não digo que é esse o caso, mas isso ocorre com frequência.”

Ex-pacientes lideram movimento por restauro

Foi depois de observar a situação de degradação do hospital onde nasceram e tiveram atendimento médico quando crianças que duas irmãs, Luana e Aldeneide dos Santos Freitas, decidiram criar um movimento em favor da recuperação do Hospital Matarazzo. Hoje a comunidade reúne mais de cem pessoas entre ex-funcionários de ambulatórios, departamentos e da Maternidade Condessa Filomena Matarazzo, vizinhos e simpatizantes da reforma.

Elas também ganharam o apoio de entidades como a Samorcc (Sociedade dos Amigos e Moradores do Bairro de Cerqueira César) e Movimento Defenda São Paulo. “Decidimos lutar pelo hospital há um ano, depois que visitamos o Umberto I pela primeira de três vezes”, diz Luana. “Nessa época, as visitas ainda eram permitidas. Depois, proibiram tudo.”

Organizado, o movimento tem um blog com muitos dados sobre o hospital (hospital-matarazzo.blogspot.com), comunidades na internet e promove reuniões (a próxima será no dia 21, no Bexiga) para discutir ações. Uma das bandeiras é tentar convencer instâncias governamentais para que se interessem pela recompra do espaço e sua reabertura como hospital público. Até o ex-secretário Andrea Matarazzo, que trabalhou no hospital de sua família, manifestou-se pela recuperação do espaço no portal Twitter. “O lugar merecia algum equipamento cultural”, escreveu.

Nova ação

A presidente da Samorcc, Célia Marcondes, classifica a situação atual do Umberto I como um “descaso com a história de São Paulo”. Ela adiantou que deve entrar com uma ação judicial direta contra a Previ. “Será uma ação ordinária de obrigação, pois os imóveis são tombados e a preservação deve ser feita, por lei”, afirma.

Enquanto o futuro do conjunto é incerto, ex-funcionários também torcem pela reabertura. Eliana Brito, de 36 anos, que trabalhou no laboratório e como escriturária do Matarazzo, é uma delas. “Ainda me lembro dos corredores cheios de gente. Quando o hospital fechou, ficamos todos com uma sensação de impotência muito grande.”


Proprietária afirma que faz reformas

A Previ, atual dona do Hospital Umberto I, afirma que está realizando reformas no complexo. A assessoria de imprensa respondeu por e-mail os questionamentos da reportagem.

Segundo a Previ, no dia 12 de março foi enviada ao Departamento de Patrimônio Histórico (DPH) uma carta que informava a contratação do Instituto Falcão Bauer. “Três meses depois, em junho, o instituto emitiu um laudo estrutural do imóvel, afirmando que as inspeções não apontaram sinais de instabilidade ou risco global de desabamento dos prédios”, afirmou. Ainda segundo a Previ, “as ações cotidianas são de caráter pontual, como reparos dos pontos mais severos de infiltrações e manutenção de equipes no local”. Sobre o futuro dos prédios do complexo, a assessoria disse que não “não há negociações (venda ou aluguel) em andamento”.

O primeiro projeto da Previ, que comprou o Matarazzo e o terreno de 17 mil m² em novembro de 1996, por R$ 42 milhões, era fazer ali um hospital menor, uma torre de escritórios, outra de consultórios, um shopping e um flat, mas houve problemas com o tombamento do conjunto, em vigor desde 1986. A Previ ingressou com uma ação de destombamento, mas em 1999 duas entidades de bairro bloquearam o negócio na Justiça. O processo está aberto.

A Previ proibiu a visitação após saber das fotos feitas pelas duas irmãs. “Recebemos muitos pedidos. Infelizmente, as visitas estão vetadas porque não seria seguro”, disse um assessor da Previ.


MEMÓRIA

>>O Hospital Umberto I foi inaugurado em 1904 por iniciativa da comunidade italiana de São Paulo. Em 1917, o hospital foi ampliado e aparelhado pela família Matarazzo. A maternidade abriu em 1943

>>A família sempre apoiou o hospital, de maneira filantrópica, até 1986, quando os custos ficaram altos demais. Foi adotada uma gestão conjunta com o governo, que só durou até 1993 por conta da confusão administrativa

>>Nos últimos dias, a situação era triste: com os salários atrasados, os médicos tinham que recolher o lixo . A interdição pela Vigilância Sanitária foi em 17 de outubro de 93

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